Cotidiano

A volta

Quando tudo parece difícil a volta é o caminho, todo mundo um dia volta, quando os ciclos quebrados se fecham, chega a hora de recomeçar.
É possível repetir o trajeto através das migalhas de pão deixadas.
A volta propicia o reencontro com aquilo que não terminamos, as fases que não se findaram, o destino que saiu do seu percurso.
Ficamos mais maduros e certos do que queremos quando decidimos retornar. Voltar é um ato de escolha consciente. Quando subimos a montanha da vida e não encontramos nada ao olhar o horizonte, é a hora de voltar, é necessário que as bagagens fiquem e aprendemos com as lições que o passado pesa nas nossas costas. Quando vamos em busca de completar os espaços não preenchidos, não é preciso que os problemas mal resolvidos se acumulem como fardos a carregar.
Voltar à estação outra vez sem as malas é compreendermos que cada recomeço apresenta um novo olhar para o horizonte.
A música Enquanto houver amor, de Sérgio Lopes, interpretada por Cristina Mel, nos aponta exatamente esse novo olhar sobre o horizonte, quando diz em seus versos “A vida tem surpresas escondidas pra se achar e nos cabe o dom de procurar”.
A volta nos propicia desvendar essas surpresas!
As pessoas voltam para as nossas vidas, os lugares voltam, as coisas voltam e quando eles não vêm, nós podemos voltar, voltar é fazer o sonho esquecido se tornar real, é vencer aquilo que a doença nos deu esperança de continuar: reviver.
Há momentos e há dias em que a única coisa de que precisamos é voltar, a vida nos dá oportunidades de voltarmos.
É a vez de deixarmos tudo novo de novo, o sentimento da alegria recuperada se dá no retorno, o perdão camuflado, a palavra não dita, o carinho perdido, a gratidão não reconhecida, voltar é uma grande lição que a vida como professor nos ensina. Isso não tem a ver com perder, com desfazer-se do presente e abraçar o passado, isso não tem a ver com trocar de livro, mas sim com virar a página.
Ficamos a escrever a velha carta não terminada.
Temos o papel rabiscado em nossas mãos, o rascunho é tão importante quanto a obra finalizada, é ela que nos leva ao ápice do que queremos escrever.
Podemos retornar, apagar, refazer, reescrever.
O tempo nos aponta os sinais de quando podemos voltar, basta abrirmos as janelas para vê-los.
Deixemos a porta destrancada para que entrem, podemos carregar nossa mochila, entre os dedos a antiga carta e seguirmos à luz do sol.
Voltar…
Há vezes que só isso é preciso!
Não me julgue!
Eis a redoma de vidro que nos protege e esconde todas as coisas que não deixamos escapar.
Quem conhece melhor e profundamente o próprio passado e todas as marcas que os anos trazem?

As cicatrizes ficam desenhadas no coração, são traços das mágoas sofridas, do lamento sentido, da saudade e do adeus engolidos, da dor da solidão vivenciada.
Ninguém catou os espinhos das estradas onde antes só havia flores. Ninguém seguiu a sombra dos passos que percorremos, nem sonhou os sonhos que sonhamos.
Por eles, apostemos a vida, derramamos o suor de cada ato.
Andamos, caímos, levantamos.
De quem era a mão que nos tirava do poço quando sofríamos a queda?

Não havia mão sequer.
Ninguém pode escrever a história do outro na sua plenitude, sem erros, expressando o real sentimento, a verdadeira emoção de cada gesto. Então, por que tantos apontam seus dedos colocando em nós a culpa ou expressando suas opiniões se a vida deles foi outra e ninguém viveu nem sentiu o que trazemos em nós?

Fácil é acusar o outro quando nos esquecemos que somos todos pecadores.
Difícil é amá-lo na profundeza e formosura do próprio amor.
Fácil é supor as razões do outro quando não sabemos os seus pensamentos.
Difícil é estimar as suas qualidades.
Madre Tereza de Calcutá uma vez disse que “quem julga as pessoas não tem tempo para amá-las”.
Parece verdade.
A crítica que fazemos ocupa o espaço destinado aos bons sentimentos.
É fácil omitirmos opiniões sobre alguém quando a vida do outro não condiz com o que vivemos ou acreditamos.
É fácil darmos a sentença quando o que para nós é preconceito para o outro é uma maneira de viver bem, quando nossa crença não é a filosofia que ele escolheu, quando não tivemos a mesma formação social, emocional, psicológica, etc.
Carrega em cada passo dado o sufoco das angústias da vida.
Suporta todo o conteúdo da história vivida; as recordações na memória, o trajeto percorrido, as lágrimas derramadas.
As dores: a dor do amor perdido, a dor do amor não correspondido, a dor da traição, da negação, da acusação, do perdão não dado e do perdão não pedido.
Nele estão contidas todas as dores do mundo.
O que bloqueia o processo de prosseguir é o passado.
Ele desperta todos os medos existentes.
Apresenta todos os fatos ocorridos e lista as histórias vividas muitas vezes fracassadas.
Ele pinta o personagem do qual um dia nos vestimos e o preenche com as cores da opressão. Nele há todas as cores tristes do mundo.
Ele vem para dizer que não vai dar certo.
Que o erro vai acontecer outra vez. Que o amor vai ser esquecido no caminho.
Que os outros e as outras vão ser iguais.
É o passado que diz que todas as pessoas são iguais, e que você pode apostar, mas não vai dar certo.
Ele nos oprime nas paredes dos nossos temores.
Nele estão contidos todos os medos do mundo.
O passado pergunta quando vamos desistir, pois recorda à mente o filme das histórias mal sucedidas.
Põe dúvidas quanto a prosseguir com esta ou com aquela pessoa, pois parece já termos vivido o mesmo conto de final infeliz.
Questiona até quando vale a pena continua, até quando vamos resistir à dor e ao cansaço das situações repetidas.
Faz imaginar o mesmo triste fim para tudo.
O passado traz outra vez o espelho e nos indaga quando nos olhamos nele: É nesse ser humano em que você acredita?

E nos miramos dos pés à cabeça e relembramos as histórias de todas as vezes que não foram possível.
O passado nos faz desleais aos nossos valores.
Quando nos atinge, impede o cultivo dos princípios que temos.
Ele quer manchar a nossa essência. Denigre nossa imagem embaraçando-nos nas teias dos nossos pensamentos falsos.
Desenha a figura que temos de nós mesmos em sua visão distorcida. Porém, de uma coisa devemos nos lembrar:
Nós não somos o nosso passado.
Para vencer o inimigo, você deve enterrar o seu passado.
Desacreditar dessa maneira leviana de tentar fazer as coisas da maneira mais fácil, quando com isto alimentamos os nossos maus-hábitos.
Sim, pois o que nutre o nosso passado são os maus-hábitos e por sua vez o passado é alimentado por eles.
Como vencer o próprio passado se ele faz parte da biografia?
Vencer o passado não tange ao fato de esquecê-lo.
Você vai lembrá-lo, mas dando-lhe o mérito de sua fraqueza e de uma história que terminou.
Enquanto você remoer todas as dores sofridas, seu coração estará repleto de todas as fraquezas do mundo.
A vida se faz no presente com aquilo que temos em mãos e com as oportunidades que podemos agarrar. Pois o presente é sempre o nosso melhor amigo que nos apresenta um enredo melhor, profundo e pleno, em busca do que queremos alcançar. Dê ouvidos aos seus bons amigos que habitam em você enquanto o seu velho inimigo cansado se desfaz pelas novas escolhas.
Termino esse texto com a frase de Stephani Ignatti: “Não venha me julgar. De mim você conhece apenas a parte que eu lhe permito conhecer”.

Pense nisso!!!

Flavio Ferreira