Umbanda

Preto-Velho – A mais carismática entidade dos Terreiros de Umbanda

“Sem dúvida alguma a mais carismática entidade que povoa os Terreiros de Umbanda”

Surgiu como a peça fundamental nas orientações doutrinárias dos ritos da nova religião, desde a ordem dos trabalhos, o uso das vestimentas brancas, das guias (como a 1ª, chamada de Guia do Pai Antônio), do 1º ponto cantado de Umbanda: “Minha cachimbá tá no toco, manda murequi buscá” e a influência direta dos Orixás em nossos trabalhos. Foi responsável também pelo chamado a Ibeijada, aos Orientais e aos Guardiões para trabalharem em comunhão na mesma seara. Além de trazer a grandiosidade da cultura africana em nossa religião.

A mística dos Preto-Velhos é fruto de condições e circunstâncias únicas em terras brasileiras. A sofrida vida dos escravos, trazidos da África, já bastante documentada e comentada, fazia com que os indivíduos, em função do penoso e extenuante trabalho a que eram submetidos, somado aos maus tratos, vivessem, em média, somente sete anos após sua chegada ao Brasil. A partir das mudanças no panorama econômico brasileiro, como a decadência do ciclo da cana-de-açúcar e a redução da atividade mineradora, uma grande leva de escravos foram migrados para os centros urbanos, passando então a levar uma vida mais amena e conseguindo ter uma expectativa de vida mais longa.

Mesmo assim as condições de salubridade, nesta época, não favoreciam a longevidade, mas surge a partir desse momento a figura daquele escravo que, apesar das suas condições de vida, alcança idade avançada, personificando o patriarca da raça, cuja sapiência parece lhe ser conferida pelos cabelos brancos. Nas sociedades tradicionais, a figura do idoso é um símbolo da experiência de vida e um pilar da cultura do grupo a que pertence; aquele que deve ser ouvido e cujos conselhos devem ser seguidos.

As histórias que ouvimos a respeito deles são bastante variadas e pitorescas. Dizem que em vida, foram grandes sacerdotes do culto dos Orixás; que viveram muitos anos devido a seus conhecimentos mágicos, alcançando a sabedoria e usam estes conhecimentos para os trabalhos de cura e descarrego.

Algumas histórias nos dizem também que eles foram homens comuns que alcançaram a redenção espiritual através dos suplícios do cativeiro, a sua tolerância ao martírio, sem manifestar revolta ou ódio pelos seus algozes e o profundo amor indiscriminado pela humanidade. Outros nos contam que, em vida terrena, eram homens predestinados, encarnados para assegurar um lenitivo ao sofrimento dos escravos, e que, por sua bondade e sabedoria, cativaram a amizade até dos senhores brancos, a quem também acudia com conselhos e curas, daí a sua relativa liberdade para atender, com suas mirongas ao povo pobre.

Característica típica da raça africana são o apego à vida, a alegria que se manifesta em musicalidade e uma sabedoria ancestral quase biológica, que transparece na religião. Vemos, portanto, o aparecimento de uma entidade cuja linha de trabalho é marcada pela tolerância, alegria, conhecimento, rústica simplicidade e um profundo sentimento de caridade.

Só quem sofreu na carne as desventuras da vida, podem entender ou se aproximar da compreensão do sofrimento alheio, porque é possível responder a toda violência sofrida, com amor, sem nenhum sentimento revanchista ou de vingança. Diz à lenda que foi preciso surgir um movimento nas senzalas que combatesse a prática de pagar o mal com o mal. Quando foi preciso despertar a consciência coletiva e entender a Lei Kármica que deveriam cumprir e que não adiantava, mas apelar para as Quimbandas, lançando a magia negra contra os senhores de fazendas, porque elas não os atingiam. Atingia sim aos próximos, mas aos donos não, então porque não clamar pela boa bonança afim de que através da grandiosa riqueza na terra, os donos de fazenda não encontrassem, mas necessidades em tê-los como escravos. E assim foi feito.

A organização espiritual da falange dos Preto-Velhos não é feita sobre divisões, existe apenas a busca constante da evolução para níveis de pura elevação espiritual. Eles guardam sinais particulares e individuais da origem dos elementos que a compõem. Antigos escravos, estes ainda conservam certas designações que denunciam de qual nação ou tribo africana eram oriundos. Assim encontramos Pai João D’Angola, Vovó Maria Conga, Vovô Cambinda, Pai Joaquim da Guiné, Vovô Antônio da Candonga, mas todos com uma característica em comum: a bondade e a doçura com que tratam os fiéis que os consultam, procurando um alívio para suas aflições.

Conhecidos como os psicólogos dos pobres, têm embasado em sua rica experiência de vida e transpirando a sabedoria da idade, saber como ninguém ouvir e entender os problemas de seus consulentes. O grande segredo de toda essa virtude está no perdão aos sofrimentos recebidos. Perdão este, sem discurso demagógico, que vem de um sentimento puro de desapego e humildade. Humildade!!! Talvez seja esta a palavra chave do carisma do Preto-Velho e acender a chama do Deus vivo em você, seja a principal liturgia deles.

A falange dos Preto-Velhos está dentro da “Linha das Almas”, para nós a “7ª Linha”. Seres desencarnados que alcançaram uma luz espiritual e retornam, através dos médiuns, ao plano terreno, numa missão de caridade, como que resgatando uma dívida espiritual. Grandes conhecedores de magia, de Quimbanda e dos feitiços de Exú, como das propriedades curativas das ervas, os Preto-Velhos usam também a fumaça de seus cachimbos, como os Pagés e Caboclos usam para dissolver as cargas e energias negativas que envolvem as pessoas e o ambiente. Trabalham com passes magnetizantes e indicam banhos de ervas para seus consulentes.

Quase não abrem mão de um bom trabalho feito com velas, buscando o despertar da fé de quem os procuram, porém uma de suas características mais marcantes é sua força psicológica. Sustentada pelo conhecimento espiritual, esta entidade surpreende, encanta e realiza um verdadeiro despertar da consciência. Estas entidades compõem a linha ligada aos Orixás Nanã Buroquê, Omolú e Obaluaiê, voltada para o encontro do equilíbrio da vida, a cura e lenitivo nas aflições dos pobres e das doenças e o resgate de kiumbas e/ou zombeteiros (seres com baixas vibrações), como a cura através da desobsessão.

A forma como se apresentam nos terreiros de Umbanda, através dos médiuns, é como uma pessoa muito idosa, curvada pelos anos. Às vezes apoiado em uma bengala, com dificuldade de se locomover e enxergar, com uma voz meiga, algo paternal que atrai a confiança e simpatia de quem ouve, indica, instantaneamente, a natureza da entidade. Porém diz alguns estudiosos que este comportamento é apenas uma faceta cultural, pois estas entidades, já não tendo o corpo material próprio, não poderiam se movimentar aparentando limitações físicas, isto é conhecido como “roupagem”.

Incorporam em seus médiuns, atendendo ao chamamento dos pontos cantados em sua homenagem (dependendo do ritual do terreiro, podem ser usados atabaques ou apenas cantos marcados pelo bater de palmas ou não), mas podem também “baixar” pelo magnetismo de uma oração ou de uma concentração mental dos fiéis, como relatados nos terreiros mais tradicionais que ainda conservam a liturgia simples dos primeiros terreiros de Umbanda. Geralmente sentam-se em um pequeno banquinho ou num pedaço de tronco, fumando seu cachimbo ou um cigarro de palha, queimando seus defumadores. Gostam de beber desde a cachaça branquinha até o vinho tinto bem forte (seja seco ou suave), chá de capim santo ou erva doce e não dispensa um bom café amargo. Sempre trabalham com ervas ao seu redor para realização de benzedeiras se for necessário. As contas pretas e brancas que formam as suas guias denunciam uma similaridade da natureza dos Orixás da 7ª Linha com Oxalá, mas, uma das suas preferidas, é formada pelas contas de uma semente vegetal que varia do branco leitoso ao negro. Conhecida, popularmente, como “Lágrimas de Nossa Senhora” (acredita-se que o nome tenha uma explicação religiosa que se refere aos acontecimentos do Velho Testamento, relacionados ao sofrimento), que são extraídas de uma planta esguia da família das gramíneas, entrelaçadas com crucifixos e outros fetiches africanos, como a figa de guiné, revelando a miscigenação cultural religiosa brasileira.

Não se trabalha diretamente com comida, embora eles não deixem de apreciar uma boa rapadura ou um gostoso bolinho, mas um dos pratos típicos servidos nas festas ou como oferenda aos Preto-velhos, e o mais brasileiro de todos, é a feijoada. Comida nascida no Brasil (alguns dizem nascido na França chamado de cassulê, feijoada branca) é o resultado de circunstâncias e do gênio da raça negra. O feijão preto era o mais básico e barato alimento na senzala. Plantado, colhido e preparado pelos escravos, era, às vezes, enriquecido pelas sobras de carne da cozinha da casa grande (geralmente porco). As partes que o senhor branco não comia, como os pés, a orelha, a garganta, o rabo, o focinho, etc., iam direto para o tacho coletivo e assim nascia à feijoada. Porém isto não pode ser tomado como verdade, ouvimos apenas como uma “lenda urbana”.

Carinhosamente, também chamados de Pai Preto, estes guias ensinam uma importante lição de humildade e resignação diante das adversidades da vida, sem perder a alegria e o bom humor. É comum ouvir, dos mesmos, observações jocosas a respeito dos problemas. Simplificando o que parecia complicado, dando esperanças para fortalecer psicologicamente seu consulente, porque sabem que se fraquejarmos na lida da vida, os problemas se tornam maiores e não suportamos o fardo. O discurso de um Preto-Velho em suas preleções e conselhos transpira uma mensagem cristã de perdão e compaixão, evidenciando a influência dessa religião com as citações sobre Jesus e os Santos Católicos. Uma perfeita mistura da moral cristã, com os costumes africanos e o conhecimento da medicina natural, com práticas de pajelança.

Devido ao seu modo peculiar de falar, com erros de gramática e concordância e com expressões roceiras, que demonstra a falta de instrução formal, os Preto-Velhos são menosprezados por alguns como espíritos atrasados e de pouca luz. Porém seus defensores argumentam que a exatidão do português e o lirismo das palavras não indicam a elevação espiritual de ninguém. Sustentam que grandes vultos da história da humanidade, que possuíam uma retórica exemplar e uma personalidade magnética, foram grandes genocidas, como Hitler e tantos outros e que, se pudessem dirigir alguma mensagem mediúnica poderiam parecer espíritos bastante iluminados. A qualidade da mensagem espiritual está no conteúdo, na compaixão que transparece nos atos e não na forma mecânica de sua construção.

A grande lição que ensinam estas entidades é que “colhemos o que plantamos”. E que esta é uma grande oportunidade para rever os erros cometidos, tomar consciência da nossa responsabilidade por nós mesmos na busca da felicidade.

A informalidade e humildade destas entidades fazem os fiéis se sentirem descontraídos, como se estivessem na presença de um membro da família ou um velho amigo mais sábio, que lhes atende e aconselha falando francamente, procurando ajudar a resolver seus problemas.

Quando falamos dessa grande falange, referimo-nos também às entidades do gênero feminino, que povoam os terreiros com sua graça e candura, as Pretas-Velhas, Vovó Maria Conga, Mãe Sebastiana, Velha Maria Clementina, Vovó Joaquina de Aruanda, Velha Maria Benedita de Aruanda e muitas outras que carregam a mesma história, vivida pelo gênero masculino, entidades que passaram pelas mesmas agruras e conservaram em seu íntimo a bondade e o perdão.

Toda a liturgia aparentemente caótica, nas incorporações dos Preto-Velhos, demonstra um quadro clássico da Umbanda. Os fiéis, ignorando o que seus olhos veem, enxergam não o médium, mas um velhinho negro alquebrado pela idade e pela vida, usando às vezes um chapéu de palha, outras um pano enrolado na cabeça ou nas pernas (seja branquinho ou o xadrezinho indispensável), com um galho de arruda pendurado atrás da orelha, apoiado numa bengala, fumando um cachimbo ou uma palha, rindo e bebendo no seu coité de casca de coco e, por vezes mastigando uma rapadura. É quando todas as barreiras caem e as pessoas entregam, aos seus ouvidos pacientes, suas histórias e mazelas, sem nenhum pudor de confessar fracassos ou desilusões. Por que não se sentem falando a um estranho, mas a alguém que parece conhecê-los desde o início de suas vidas.

“ADOREI AS ALMAS – É OURO SÓ”

Flávio Costa

Diretor de Liturgia